Sou filho de um beijo, encarnação do sonho de uma pedra. A lua era nova naquela madrugada em que eu quase não nascia, depois de uma noite em sofrimento de parto. Minhas avós estavam aflitas e o vento frio da noite não conseguia açoitar meu pai, que era lavado de suor.
Os vaqueiros rezavam diante do oratório, antes de saírem para os currais do Totoró. Do sótão da velha casa, meu avô Chico rezava, esperando que Mãe Quininha auxiliasse a parteira que me socorria. Muito depois foi que se deram conta de que o relógio parara, na hora em que minha mãe deu o primeiro grito. Ninguém demoveria o pêndulo, encarregado pela vida a conspirar a meu favor. Pelos cálculos humanos, era impossível alguém permanecer tanto tempo submerso, não para um bisneto de pai Tomás, mergulhador exímio.
Senti, de longe, o cheiro do leite da vacaria e, dessa agonia, eu me lembro, claramente, dos chocalhos me chamando, ajudando-me a fazer a travessia da morte consequente para a vida decretada.
Aquele era o Sombrio, sítio de meu bisavô Junqueira, herança de minha bisavó Paulina, que ali também nascera. Minha mãe guardou como relíquia o carvão daquela brasa que queimou meu umbigo, ao ser cortado com o punhal de prata do velho Araújo, ancestral de nós dois. Não sei por onde anda a pinça que me laçou e me extraiu da pedra.
Era costume, ainda no meu tempo, que o primeiro banho fosse dado pela mulher mais idosa, e que o homem de mais idade cantasse uma bênção. Fui banhado pela mão de Emília, a querida Bi, filha da escravidão alforriada e nunca liberta; de Tiqueiro, seu irmão, ouvi a primeira entonação de alegria. Era um canto de África, evocando a força das origens do meu sangue d’além-mar, enquanto, fazendo o sinal sagrado dos cristãos, Bi me banhava.
De minha avó Maria da Conceição Ramalho guardo a velha chaleira que, toda noite, espirra sobre as ervas medicinais, na mesma temperatura daquela água do meu parto, do meu primeiro banho, da minha primeira piscina de vida.
Florânia, 06 de setembro de 2016.