
Tal raciocínio é extraído, em parte, a partir do voto do Ministro Marco Aurélio (STF), por ocasião do julgamento da APDF 186, que tratava da constitucionalidade da política de cotas étnico-raciais para a seleção de estudantes da Universidade de Brasília. Naquela oportunidade, o Ministro afirmou que “a meritocracia sem igualdade de pontos de partida é apenas uma forma velada de aristocracia”.
Há pouco mais de uma semana publiquei, em minha página pessoal nas redes sociais, uma reflexão acerca da meritocracia e da diferença de oportunidades entre os indivíduos. Em poucas horas – e para a minha surpresa –, o conteúdo foi compartilhado por milhares de pessoas, levantando polêmicas, críticas, distorções propositais, elogios.
Ao longo da minha vivência como cidadã, e não apenas como magistrada, notei que, para muitos, o esforço pessoal não era suficiente. Faltava algo. Obviamente existem exceções à regra, como o Ministro Joaquim Barbosa, negro e de origem pobre, ou, ainda, o apresentador de televisão Silvio Santos, o qual, antes de se tornar um dos homens mais famosos do Brasil, trabalhou como camelô.
Todavia, pautar nosso raciocínio em “pontos fora da curva”, além de revelar certa dose de desonestidade intelectual, remete-nos à conclusão de que teria faltado força de vontade às pessoas que, nascidas nas mesmas condições do Ministro e do apresentador, não tiveram o mesmo destino. E tal afirmação, sabemos, é esdrúxula.
O cerne de toda a polêmica questão consiste na necessidade do reconhecimento de privilégios. Isso porque, ao falarmos de meritocracia, voltamos nossa atenção exclusivamente ao mérito, deixando de lado a condição de vantagem que alguns grupos de indivíduos têm em relação aos demais.
Nascer branca no seio de uma sociedade racista e de tradição escravocrata é, inequivocamente, um privilégio a ser considerado. Há uma dívida histórica para com o povo negro: foram 354 anos de escravidão oficial. A abolição, teoricamente ocorrida há 130 anos, jamais significou a inclusão social do negro, que sofre até hoje as consequências desse nefasto período da História.
Não há como ignorar os dados. Segundo pesquisa divulgada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e pelo Instituto Ethos, apenas 4,7% dos cargos executivos das 500 maiores empresas brasileiras são ocupados por negros. De acordo com o censo realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no ano de 2014, 1,4% dos juízes brasileiros são negros. Por fim, conforme aponta o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), que traz dados de dezembro de 2014, 61,6% da população carcerária o Brasil é composta por pretos e pardos.
A ideia que pretendo passar é bem resumida por Talib Kweli: “nenhuma pessoa branca que vive hoje é responsável pela escravidão. Mas todos brancos vivos hoje colhem os benefícios dela, assim como todos os negros que vivem hoje têm cicatrizes dela”.
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